📼 | Prólogo ✩ Entre Memórias e Novos Caminhos: Meu Diário de Bordo
Projeto que promete transbordar minhas experiências em palavras.
CULTURA JAPONESADIÁRIO DE BORDO
Raquel Ishikawa
3/16/202510 min read
Voltando no tempo
Não é algo em que eu vá entrar em detalhes neste primeiro episódio, mas cresci consciente de que havia espaços que não me pertenceriam por conta da minha ascendência japonesa. Sim, essa era a crença de duas décadas atrás — e, graças a Deus, a humanidade evoluiu. Hoje, cada vez mais espaços estão sendo criados com respeito, com mais possibilidades e mais abertura para todo mundo 💛, mesmo que isso signifique seguirmos na luta por isso.
Mas, voltando ao passado: naquela época, havia poucos comerciais que traziam a representação amarela ao lado das brancas, pretas e ruivas. E toda vez que não aparecia nenhuma asiática, minha família logo exclamava: "Mais um comercial que não nos leva em consideração."
Quando víamos personagens asiáticos, vibrávamos! Mas, quando eram caricatos ou estereotipados, logo surgia a indignação e a vergonha alheia pelos atores que aceitaram aqueles papéis apenas para ter espaço nas telas de sucesso.
Por isso, dentro dessa realidade da época, fui desenvolvendo uma consciência que me fazia entender a sociedade da seguinte forma: alguns têm mais privilégios que outros até encontrarem um lugar que realmente lhes pertença. O desafio era encontrar esse lugar.
E haviam lugares sim, para nos permitir ser quem somos
Demorei para ter acesso a programas de televisão japoneses. Eu já era adolescente quando minha tia começou a gravar alguns programas de J-pop. Desde a primeira vez que assisti, fiquei encantada com o famoso Shounen Club — um programa televisivo que lançava novos grupos de J-pop masculinos, sucessores dos famosos KinKi Kids, Arashi e SMAP!
Sempre amei cantarolar e dançar. Além disso, trilhas sonoras sempre foram a minha paixão: desde que me conheço por gente, quando assisto a um filme, anime ou dorama, fico fascinada quando a melodia encaixa perfeitamente com as cenas! 😍
Meu encantamento cresceu ainda mais quando vi aqueles grupos japoneses com suas vestimentas, cortes e cores de cabelo diferentes. Toda vez que assistia, pensava: eles podem escolher e ser quem são! Mesmo que a paleta de cores fosse vermelho, preto e dourado, cada integrante expressava sua personalidade por meio de um figurino customizado. Isso transmitia muito sobre eles — se eram mais introvertidos, ousados, ou tinham uma vibe mais rap. Kkkkkk. Achava isso incrível! Era como se me desse esperança de que, sim, havia um lugar onde eu também me sentiria vibrante como eles!
Observação: Compartilho esta retrospectiva de encantamento não para militar em nenhum sentido, mas para contar um pouco do que me levou ao mundo artístico dos grupos japoneses culturais aqui no Brasil. 😉


Brasileira ou Japonesa?
No Ensino Médio, precisei mudar de escola e entrei no Colégio Maria José. Sem expectativas, eu já não acreditava mais naquelas cenas de filme em que as pessoas faziam amizade e se divertiam dentro e fora da escola. Estava naquela fase meio rebelde, desacreditada, ranzinza.
Mas, pela primeira vez, antes de me chamarem de japa, perguntaram meu nome — e logo me convidaram para ir ao intervalo com eles! Meio desconfiada, aceitei. Aceitei e me surpreendi: parecia que eu conhecia aquela turma há anos! Como se estudássemos juntos desde sempre. A gente se divertia, estudava e jogava bola!
Nenhum professor soltou aquelas frases típicas como "Você é japonesa, então deve ser ótima em matemática!", "Você tem sotaque! Nasceu no Japão?" ou "Você é inteligente, então precisa ensinar seu amigo." Não. Eu era como todo mundo daquela sala… e todo mundo era como era: uns mais zueiros, outros mais zuados, alguns mais esforçados, outros inteligentes, uns mais criativos, outros mais baladeiros — e estava tudo bem. Cada um com sua panela de afinidade, sem destratar ninguém.
Pois é… dentro daquele portão azul, eu era a Quel. A Quel que não precisava falar que eu era brasileira com ascendência japonesa.
Encerrar ou continuar?
Era julho de 2018. Havíamos acabado de completar seis meses como Grupo Nagasaki Jya Odori e superado um dos nossos maiores desafios: reunir membros suficientes para a apresentação mais esperada — a comemoração dos 110 anos da Imigração Japonesa no Brasil. O evento já havia acontecido e, inicialmente, a ideia do fundador, Kawazoe Sensei, era encerrar as atividades assim que essa meta fosse cumprida.
Mas algo maior aconteceu. O Jya (dragão) havia tocado nossa alma. Criamos laços profundos, e a conexão entre nós era indescritível.
Foi assim que cerca de 60% do grupo decidiu continuar. Os outros 40% já tinham planos traçados antes mesmo de ingressarem no projeto: iniciar uma graduação, casar, ter um filho, mudar de cidade ou até de país. Eles sabiam que fariam parte apenas daquele momento especial — e, mesmo partindo, deixaram sua marca em nossa história.
Desde então, passamos por muitos altos e baixos. Cada novo membro que chegava nos enchia de alegria, mas cada despedida deixava um vazio. Comemorávamos cada apresentação, mas também sentíamos o peso de precisar recusar convites por não termos integrantes suficientes para revezar entre nós. Vibrávamos ao perceber nossa evolução — quando conseguíamos carregar o Jya por mais tempo, correr sem nos cansar tanto ou fazê-lo voar com ainda mais imponência. Mas, ao mesmo tempo, aprendemos a exercitar a resiliência. Não podíamos crescer no ritmo que gostaríamos, pois precisávamos respeitar as entradas e saídas do grupo, o tempo de cada integrante e o próprio tempo da nossa equipe. Diferente das atrações tradicionais japonesas, muitas delas com mais de uma década de história, nós ainda estávamos no início da nossa jornada — construindo, passo a passo, o nosso legado.






Faltava algo em mim...
Mesmo assim, algo me fazia falta.
Não me lembro mais o que eu dizia para minha mãe, mas meus pais procuraram bastante. Depois de tentarmos conhecer alguns lugares da comunidade japonesa que não deram certo, minha mãe encontrou uma divulgação no jornal convidando interessados a conhecer o Grupo de Danças Tradicionais Japonesas - ACAL - Yosakoi Soran.
No fim de semana seguinte, meu pai me levou até um salão grande no Bairro da Liberdade, onde fui acolhida por muitas meninas. Elas me apresentaram o grupo e me ensinaram uma das várias coreografias. E, ao ouvir a música, as batidas ressoaram dentro de mim, preenchendo aquele "algo que me faltava"!
Meu coração pulsava, meu corpo vibrava! Eu sentia uma felicidade que me fazia querer aprender tudo muito rápido para me apresentar logo!
Duas semanas depois, fui prestigiá-los em um evento pequeno de um colégio. E, ao assisti-los, minha vontade de estar ali só cresceu!
Eu ainda não sabia me portar, não sabia puxar assunto. Minha timidez tomava conta de mim. Mas, ao mesmo tempo, aquele sentimento de ter encontrado meu espaço me fazia querer estar sempre ali, com aquelas pessoas que, em pouco tempo, se tornaram minha segunda família.


A luta dos grupos culturais
Entrei no Grupo Shinsei ACAL, em 2007 e, naquela época, o casal Kawazoe ia mensalmente até a ACAL para nos ensinar as músicas de Yosakoi Soran que dançávamos junto com seu grupo, o Minbu Ribeirão Pires.
O casal Kawazoe nos ensinava com maestria as coreografias que aprenderam no Japão ou desenvolveram ao longo dos anos. Além de nos ensinarem, eram rigorosos e exigiam alto desempenho em cada movimento aprendido!
Em 2008, comemoramos os 100 anos da Imigração Japonesa no Brasil. O Kawazoe Sensei (professor, em japonês) reuniu alguns grupos de Yosakoi Soran do Brasil e organizou uma apresentação incrível no Sambódromo do Anhembi. Todos nós dançamos a mesma música, ocupando uma área de 2 km de extensão — como se fosse um verdadeiro Festival de Yosakoi Soran que acontece no Japão!
Nosso grupo estava no auge! Tínhamos muitos integrantes e uma agenda sempre lotada. Até que, anos depois, os membros foram seguindo seus próprios caminhos: muitos passaram em universidades fora de São Paulo, outros começaram a trabalhar, alguns se interessaram por outras formas de arte… e seguiram adiante.
Por muitos anos, temíamos o encerramento das atividades. E, por temer, alguns membros sempre lutaram para trazer novidades que mantivessem o grupo motivado a seguir em frente. Foi assim que estreitamos parcerias com outros grupos da comunidade japonesa e começamos a nos apresentar em lugares diferentes também.
Novos Desafios
Os 110 anos da Imigração Japonesa se aproximavam, e não víamos nenhum movimento para um evento tão memorável quanto o de 100 anos, em 2008.
Com receio de que não houvesse nenhuma grande celebração, entrei em contato com o Kawazoe Sensei para perguntar como ele havia mobilizado tantos grupos de Yosakoi Soran naquela época. Foi nesse contato que surgiram novos desafios:
O Kawazoe Sensei me orientou a contatar os grupos e propor um projeto. Disse que não seria fácil, que exigiria horas de dedicação voluntária, mas que valeria a pena quando se tornasse realidade.
Percebendo minha vontade de tornar 2018 memorável, ele me contou que a Associação Nagasaki Kenjin do Brasil havia recebido um dragão da província de Nagasaki, Japão, e precisava de membros para formar um grupo. Além disso, mencionou que uma comitiva japonesa viria ao Festival do Japão e que seria importante apresentar a dança para eles.
Eu aceitei ajudá-lo. Desde que nos ensinou tantas danças, o Kawazoe Sensei se tornou uma referência e inspiração para mim, com sua energia, dinamismo e força.
Criei uma arte, publiquei nas redes sociais com meu contato e, em uma semana, tínhamos cinco membros.
Nos reunimos e fomos conhecer o grupo que manteve viva a Dança do Dragão por um ano. Eles nos ensinaram os movimentos básicos e treinamos juntos duas vezes. Depois disso, encerraram as atividades do Jya Odori (Dança do Dragão de Nagasaki) e seguiram apenas com o wadaiko (o tradicional taiko japonês).
Com a ajuda da divulgação, conseguimos novos membros e iniciamos os treinos, no dia 18 de fevereiro com a condução da Toshie Sensei e do Kawazoe Sensei, em um espaço pequeno e de teto baixo.
Seguimos divulgando, abri uma conta no Facebook e no Instagram e, em um mês, conseguimos mais de dez novos membros.
Paralelamente, junto com minha amiga Grace, dei início ao projeto da Apresentação de Yosakoi Soran Brasil. E, ao lado dos membros do Grupo Nagasaki Jya Odori, seguimos com o desafio de reunir mais integrantes para a apresentação do Jya Odori no Festival do Japão.
Nada é por acaso...
Durante essa jornada, um amigo viu que eu estava mobilizando os grupos de Yosakoi Soran pelo Brasil e comentou que ele fazia parte de uma comissão que estava organizando um grande evento no Festival do Japão, em comemoração aos 110 anos da Imigração Japonesa!
Compartilhei a novidade com os grupos de Yosakoi Soran e Nagasaki Jya Odori, e, aos poucos, os projetos foram tomando forma e se tornando algo cada vez mais incrível.
Foi um trabalho imenso! Envolvemos muitas pessoas, aprendemos a ser mais sociáveis, polidos e estratégicos ao lidar com pessoas mais velhas e com outros grupos artísticos. Mas, sem dúvida, foi uma das experiências que mais me trouxe bagagem e que aumentou ainda mais meu respeito pela luta dos grupos culturais que mantém vivas suas tradições no Brasil.
Foto do site: https://saopauloantiga.com.br/
Foto: Apresentação do Grupo Shinsei ACAL na Praça da Liberdade - São Paulo - Brasil em 2009
Foto: Apresentação do Grupo Shinsei ACAL no Evento Chimuchurasa, em parceria com o Grupo Ryukyu Koku Matsuri Daiko em 2009
Foto: Apresentação de 9 grupos de Yosakoi Soran do Brasil nos 110 anos de Imigração Japonesa em 2018
Foto: Apresentação do Grupo Nagasaki Jya Odori em parceria com os Grupos Orochi de Hiroshima Kenjinkai, Ryuka Sosaku Eisa Taiko, Ryukyu Koku Matsuri Daiko, Seinen Santa Clara na Comemoração dos 110 anos de Imigração Japonesa em 2018


Desde então..
Paralelo às minhas lutas profissionais e pessoais, há horas, dias e semanas que dedico ao voluntariado artístico.
Foi através da arte e da dança que descobri forças que talvez nunca tivesse encontrado em outros âmbitos da minha vida.
A dança me mostrou que sou inquieta, que odeio injustiças e que luto para que todos sejam vistos e valorizados. Foi dançando que aprendi a importância de abrir portas para todos, pois, assim como um dia senti que não podia pertencer a determinados espaços por ser brasileira descendente de japoneses, há também brasileiros descendentes de outros povos que se identificam com nossos valores, nossa visão e nosso ikigai de manter tradições culturais vivas.
É claro que cada espaço tem suas regras e visões de mundo — e a comunidade japonesa não é diferente. Hoje, compreendo que não se trata de não poder pertencer a determinados lugares, mas sim de encontrar aqueles que realmente combinam com quem somos. Se não nos encaixamos, não é o espaço que precisa mudar para nos acomodar, mas sim nós que devemos buscar o lugar onde o encaixe acontece de forma natural, sem forçar, sem ajustes — apenas pertencendo.
Foi nessa busca por espaços que fazem sentido para mim que vivi tantas experiências diferentes. Mas, mais do que isso, foi no encontro comigo mesma que pude vivenciar tudo isso com profundidade, seja nos meus hobbies, na minha vida profissional, social ou familiar.
Esses momentos, essas reflexões e essa parte da minha história são um pouco do que sempre quis escrever. E que bom que hoje consegui transbordar em palavras, lembranças e sentimentos que por tanto tempo estiveram guardados. 💙
Obrigada por ter lido até aqui.
Até o próximo episódio!
Com carinho,
Quel. ✨
